03 março 2009

A CRISE FINANCEIRA AINDA NÃO ACABOU

A propósito deste comentário do António sobre os gigantescos prejuízos revelados ontem pela AIG (na ordem dos 61 mil milhões de dólares), vale a pena as tecer as seguintes considerações:
1. Apesar de mais controlada, a crise financeira ainda não acabou. Após os terríveis meses no final de 2008, as institutições financeiras começam agora a apresentar os resultados trimestrais mais recentes e o panorama não será, de certo, animador. É exactamente por isso que a bolsas têm caído um pouco por todo o mundo e, provavelmente, continuarão instáveis nos tempos mais próximos.
2. Há algumas dúvidas entre os economistas sobre os montantes dos planos de resgate, mas quase todos concordam que a intervenção dos governos dos países mais afectados tem de ter uma magnitude pouco habitual. É exactamente isso que a Administração americana está a fazer, apesar de haver alguma incerteza sobre a eficácia das medidas já tomadas (p. ex., alguns economistas preferiam ver a nacionalização temporária dos bancos). Aliás, alguns economistas, como Paul Krugman consideram que o problema dos planos de resgate não é serem demasiado grandes, mas sim demasiado pequenos. Porquê? Não haverá o risco de as principais economias mundiais se estarem a endividar em demasia? Não haverá o risco de estarmos a gastar de tal modo que abriremos portas à inflação? Até pode ser que tal aconteça, mas não é provável. Pelo menos por enquanto. É que o risco principal actualmente é o de deflação, não de inflação. O problema é que as pessoas não estão a gastar o suficiente, os investidores e as empresas não investem e os bancos e os mercados financeiros não concedem crédito como habitualmente. Por isso, a procura total tem vindo a diminuir substancialmente um pouco por todo o mundo, afectando as exportações e as produções dos vários países (p. ex. só no Japão, no último trimestre, o PIB decresceu a uma taxa anualizada superior a 12%!). É por isso que os governos têm embarcado em intervenções que seriam consideradas uma verdadeira loucura em tempos normais. O primeiro orçamento da administração Obama é a prova mais fiel disso mesmo, projectando um défice de 12% do PIB (sim, 12%), o maior desde a Segunda Guerra Mundial. Os Republicanos têm bradado aos céus, mas o povo americano aprova as medidas, assim como a popularidade estratósférica de Obama o demonstra.
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Quais serão então as repercussões dos planos de resgate? Primeiro, o importante é parar com a instabilidade do sistema financeiro. Se é inacreditável que o governo americano tenha gasto quase 200 mil milhões de dólares para resgatar a AIG, a verdade é que agora já é demasiado tarde para voltar atrás. É por isso que o governo continua a injectar dinheiro na empresa. Certamente que o mesmo se passará com outras instituições financeiras e outros bancos. Segundo, a prioridade tem de ser dada à crise económica, cujas consequências poderão ser ainda mais graves do que o desastre do sistema financeiro.
De uma coisa podemos estar certos: a era dos governos pequenos, a era da liberalização económica mundial, acabou, ou pelo menos abrandou. Nos próximos tempos, veremos os governos intervirem mais e mais nas suas economias. Para bem e para mal.

4 comentários:

antonio disse...

Caro Álvaro,

Colei aqui um artigo do expresso a que eu chamaria Obama jogando ao Monopólio,

Para o economista Antal Fekete o pacote de Obama e as medidas da Fed sofrem todas do mesmo defeito de origem
Reuters "O pacote Obama vai falhar", dispara o economista húngaro Antal Fekete, de 77 anos, numa entrevista ao Expresso a partir de Acapulco. O programa de emergência americano aprovado este semana no Senado por um voto sofre do mesmo pecado original de anteriores, ainda que as caras tenham mudado e várias alíneas sejam diferentes. Consiste na mesma crença de verter moeda fiduciária na economia sem suporte de valor real, denuncia o professor nascido em Budapeste.
Fekete, que é matemático de formação, ironiza com a nova equipa económica e financeira de Obama. "A Sala Oval está refém de uma clique viciada numa mesma mistura de paradigmas keynesianos e monetaristas (da corrente de Milton Friedman)", afirma. Pode parecer um paradoxo, mas este cocktail vive de duas ideias para a função da "mão visível" do Estado: intervenção do braço do Estado no mercado colmatando alegadas "falhas" da procura em tempo de crise e manipulação financeira pelos bancos centrais da taxa de juro.
Fekete é um dos sobreviventes da chamada escola económica austríaca nascida em Viena no final do século XIX e que teve como fundador Karl Menger e como seguidores economistas de renome como Ludwig von Mises, o Nobel Friedrich Hayek e o próprio Joseph Schumpeter. A esta corrente sempre provocou alergia esta concepção do Estado intervencionista. Mises tinha uma frase célebre: a primeira obrigação de um economista é a de dizer aos governos o que não podem fazer.
Políticas letais na Sala Oval
As convicções dominantes em Washington são duas políticas letais, observa o professor reformado da Memorial University of Newfoundland, no Canadá, onde leccionou desde que saiu da Hungria aquando da invasão soviética de 1956. "A principal raiz das depressões não é o afundamento da procura, como sugeriu Keynes, mas a destruição de capital provocada pela deliberada supressão política das taxas de juro", explica-nos Fekete, que é considerado um dos especialistas da teoria de formação e origem dos juros. Pelo que o problema central não está na procura, no consumo, mas na "destruição de capital" ocorrida ciclicamente durante as "bolhas" e estoiros financeiros, sublinha.
Por outro lado, o mito das taxas de juro tendencialmente para zero como medicina curativa - usada, em diversas alturas, quer por Alan Greenspan como por Ben Bernanke que ainda está em exercício na Reserva Federal americana - deriva da ideia que os políticos e banqueiros centrais têm de que podem "gerir" a massa monetária a seu bel-prazer sem que haja um "sustentáculo" com real valor. Fekete recorda que "os japoneses acreditaram nos conselhos dos doutores monetários americanos" quando se viram atirados para a crise dos anos 1990 e sabe-se os resultados (negativos) dessa experiência até hoje. A "lei" de Fekete tem funcionado (ver no final).
A prenda estratégica oferecida à China
Essa tentação fiduciária agravou-se sobretudo desde o "golpe Nixon" em Agosto de 1971. O presidente americano cortou a relação do dólar com o padrão ouro, seguindo o conselho de Milton Friedman contra a opinião, por exemplo, do Nobel Paul Samuelson que defendia a desvalorização do dólar. O fecho da "janela do ouro" trouxe a euforia de dar impunemente à manivela na impressão da "nota verde". Depois, a espiral de "crédito sintético" não mais parou, recorda o nosso interlocutor que escreveu nos anos 1980 uma série de textos sobre política monetária - 'Os Dez Pilares de uma Moeda e Crédito saudáveis'.
O que isso gerou foi uma bebedeira de liquidez assente na ideia de eternamente se ficar a dever refinanciando a dívida sem planos sérios de a pagar alguma vez, acreditando na capacidade política de manter os credores na convicção da bondade do esquema. Sem temer que um dia a corda parta.
Entretanto, irónica e paradoxalmente, a liquidez artificial do consumidor americano e do estado despesista yankee nadando em moeda fiduciária provocou o inesperado: a China aproveitou a janela de oportunidade. Foi a prenda estratégica para o boom chinês e a sua enorme liquidez em dólares.
Um cenário do gelado ao escaldante
Fekete é, por isso, muito crítico das sugestões, nos EUA, de se desenvolver uma política de flexibilização monetária quantitativa (tecnicamente chamada de quantitative easing), de criar recipientes financeiros para o "lixo" do sistema, designados por bad bank, ou de nacionalizar a banca socializando as asneiras. "Além do mais, isso terá efeito zero na economia, e levará à bancarrota do governo americano", diz peremptório.
O que poderá ter como consequência um cenário evolutivo que Fekete antecipa: "a economia passar de um período de deflação - em curso - para um de hiperinflação mais tarde". Ou seja passar de um banho gelado para um duche a escaldar. Uma oscilação selvagem que pode surgir de surpresa e para a qual "o mundo não está preparado", diz o professor. E em que os fantasmas de uma economia caótica como a da República de Weimar na Alemanha dos anos 1920 e 1930 vêm à lembrança.
A hipótese de um cenário desses foi, recentemente, relembrada por dois analistas londrinos da Morgan Stanley Smith Barney num relatório ambíguo intitulado "Poderá a hiperinflação acontecer de novo?" (29 de Janeiro de 2009) "Obviamente, este é um cenário extremo", dizem Joachim Fels e Spyros Andreopoulos, que o classificam como "um possibilidade distante", mas concluem: "Será avisado não ignorar este risco". Referem que "um evento do tipo cisne negro" relativo a inflação ou mesmo hiperinflação faz sentido em certas condições.
Fekete propõe, por isso, o regresso progressivo ao padrão-ouro e ao sistema de taxas de câmbio fixas "que o mundo abandonou tão loucamente em 1931 e depois em 1971". Sugere à China que seja pioneira neste plano alternativo, pois o que ela detém agora "é um pilha de títulos de dívida (americanos), que, no final, podem não valer mais do que o papel impresso em que estão". Basta que o dólar colapse e que o Governo americano seja obrigado a declarar incumprimento. Um cenário "argentino" que muitos já andam a prognosticar. Pelo que a China deveria colocar as barbas de molho - além do mais é hoje em dia o principal fornecedor de ouro do mundo, tendo ultrapassado a África do Sul em 2007, segundo a consultora inglesa GFMS.
A "lei" de Fekete
Há uma relação perversa entre a manipulação em baixa das taxas de juro pelos bancos centrais e a circulação de capital, diz o matemático Antal Fekete. Apesar de ao cidadão comum endividado parecer que os juros em queda livre lhe vão aliviar a vida, Fekete deduziu uma "lei" que os economistas keynesianos e monetaristas não gostam especialmente: "à medida que a taxa de juro decai, o valor de liquidação da dívida aumenta - em vez de o diminuir, uma taxa de juro em queda aumenta o fardo da dívida". Por isso, Fekete considera a lógica de manipulação de taxas de juro tendencialmente para zero como uma arma "letal". E, a partir do momento "em que o saldo entre o valor de liquidação da dívida e os activos ultrapassa o capital, as firmas tornam-se insolventes. É o que aconteceu aos bancos nos EUA e no Reino Unido. É o que aconteceu à indústria americana do automóvel, por exemplo", conclui.
A destruição de valor pode não ser logo óbvia a nível macroeconómico. Revela-se por outros dados chocantes em que a América actual é pródiga.
Os números falam por si:
- o agregado M3 (indicador da massa monetária total na economia, que a Reserva Federal americana deixou de publicar desde Março de 2006) no final de 2008 estava a crescer 11% ao ano, segundo a Shadowstats.com;
- por cada dólar de PIB americano é necessário "imprimir" 6 notas verdes de um dólar (ou seja, o valor real em paridade de poder de compra do actual dólar é 1/6 do seu valor nominal!);
- a pirâmide de instrumentos financeiros "derivados", em Junho de 2008 (último dado semestral conhecido), segundo o Banco Internacional de Pagamentos totalizava 683 biliões de dólares (cerca de 531000 mil milhões de euros), ou seja 11 vezes o PIB mundial. Um grupo de quatro bancos multinacionais - JP Morgan Chase, Citibank, Bank of America e HSBC - detém 24% dessa pirâmide, segundo Andrew Hughes, da Global Research. Para alguns analistas, esta pirâmide poderá ser o fósforo que incendeia a floresta em 2009;
- o défice orçamental poderá rondar os 10% do PIB americano em 2009 e 2010 e manter-se em níveis vermelhos por vários anos (muitíssimo acima do que é proibido pelas regras da Zona Euro), segundo revelou o Borrowing Advisory Committee do Departamento do Tesouro

Rita R. Carreira disse...

Eu acho engraçado que toda a gente acha agora que deixar Lehman Bros falhar foi a pior coisa que se fez pois desencadeou uma sequência de maus acontecimentos que ainda se desenrola. Mas aida há os que querem que o governo deixe a AIG falhar. As coisas não sao tão simples como uma simples falência.

A AIG é absolutamente enorme! É maior do que a grande maioria dos países. De facto a AIG age como "seguradora" da dívida pública de muitos países. Para mais, muitos reformados nos EUA compraram anuidades que são basicamente a sua reforma, pois o estado Americano, ao contrário dos estados da Europa Ocidental, não é um estado de previdência e como tal cada individuo tem de poupar a sua própria reforma ou ter trabalhado numa companhia que lhe forneça uma pensão (mesmo assim, a GM, Chrysler, Ford, etc. estão a ver-se aflictos para pagar os seus reformados! Se forem à falência, lá se vai a reforma...) e também têm de comprar seguro de saúde adicional, pois os programas do estado não cobrem todas as doenças/tratamentos.

Ou seja, imagine-se que a AIG falha, o que é que acontece? Em primeiro lugar, os países segurados pela companhia, que por enquanto não se sabe quais são, passarão a pagar taxas de juro mais altas pela dívida pública. Logo, os contribuintes desses países terão de pagar impostos mais altos. Depois, uma grande parte dos reformados Americanos ficam destituídos, logo lá se vai uma grande parte da população com maior poder de compra do mundo. Os individuos que tinham seguros de vida, acidentes, hipoteca, etc. ficam sem seguro; note-se que estes individuos estão espalhados pelo mundo inteiro. Os bancos cuja dívida é segurada pela AIG também ficam a pagar juros mais altos, logo os consumidores e empresas terão de pagar juros mais altos pelos empréstimos, etc.

Finalmente, a economia funciona tendo como base a confiança. Um falhanço desta magnitude é suficiente para arrasar qualquer nível de confiança--tal como a falência de Lehman Bros causou que todos os banco duvidassem de toda a gente irrespectivamente da sua história de crédito. Logo o número de transacções observado na economia seria extremamente reduzido, a velocidade do dinheiro passaria a passo de caracol. Seria como se a massa monetária em circulação fosse contraída para menos de metade.

É extremamente improvável que o sistema consiga recuperar-se em dois anos. Talvez 10 ou 20... E a longo prazo, estará muita gente morta, como dizia o Keynes.

Vale a pena ir à página do Robert Shiler e ver a história do S&P 500:

Setembro 1929: 31.30
Junho 1932: 4.77
Só em Julho de 1954 é que passou novamente do 30.

Os dados estão aqui:
http://www.econ.yale.edu/~shiller/data.htm

~Rita

Anónimo disse...

Boa tarde
Caro António
É a primeira vez que visito o blogue. Achei interessante o António "trazer à baila" o artigo do Expresso de 7 de Fevereiro (O Pecado original do pacote de Barack Obama - do Jorge Nascimento Rodrigues). Curiosamente andava "à procura" de ver algum comemtário sobre o mesmo. Gostava que o Ávaro o comentasse. Também gostaria da sua opinião sobre: As burlas piramidais levam/levaram (de forma indirecta) à criação de moeda?
Obrigado e cumprimentos

Joao Bispo disse...

Também estava curioso em ver a opinião do Álvaro em relação às visões desse artigo. Muitas vezes, aparecem posições como esta, muito discordantes, e quem não está por dentro do assunto não sabe dizer se têm alguma fundamentação ou não.