03 fevereiro 2008

AS CONTRADIÇÕES TURCAS

Numa altura em que as águas turcas andam novamente agitadas por causa da questão do laicismo do Estado fundado por Atartuk, com milhares de pessoas nas ruas a exigirem que o governo volte atrás na decisão de permitir o uso do véu islâmico nas universidades, vale a pena revisitar uma das obras mais importantes do escritor e Prémio Nobel Orhan Pamuk. De certa forma, Pamuk é ele também o espelho dos conflitos e contradições que rasgam a sociedade turca. Laico e republicano, a sua escrita e posições políticas dão azo a paixões e reacções tão extremas como a própria sociedade turca. Odiado pelos republicanos radicais e pelos islamistas, ainda há dias surgiram notícias de um atentado gorado que tinha objectivo assassiná-lo. Ora, na obra de Pamuk, nenhum livro retrata tão fielmente as contradições da sociedade turca como Snow ("Neve"), ainda não publicado entre nós (mas certamente em vias de o ser). O livro narra a história de Ka, um poeta emigrado na Alemanha, que regressa à Turquia para investigar uma vaga de suicídios em Kars, uma cidade numa das zonas mais remotas do país. Sem dar por isso, aos poucos, Ka vê-se envolvido numa teia de tensões e contradições, em que as várias facções existentes na cidade (os islamitas, os moderados islâmicos, os republicanos, os extremistas seculares) se confrontam (em sentido literal e figurado) pelo controlo da cidade e do país. É igualmente neste livro que a questão do genocídio armeno ganha alguma relevância, ao ser denunciado por uma das personagens. Foi devido a esta cobertura da questão armena que Pamuk tem sido alvo de atentados.
Por tudo isto, este é um livro que vale a pena ler. Por tudo isto, esta é uma referência indispensável para percebermos a Turquia moderna. E se as primeiras páginas são mais densas e opacas do que, por exemplo, o celebrado "O Meu Nome é Vermelho" (publicado pela Presença), a acção torna-se decisivamente emocionante ao longo do livro. Uma obra difícil de esquecer.

Sem comentários: