Numa altura em que as águas turcas andam novamente agitadas por causa da questão do laicismo do Estado fundado por Atartuk, com milhares de pessoas nas ruas a exigirem que o governo volte atrás na decisão de permitir o uso do véu islâmico nas universidades, vale a pena revisitar uma das obras mais importantes do escritor e Prémio Nobel Orhan Pamuk. De certa forma, Pamuk é ele também o espelho dos conflitos e contradições que rasgam a sociedade turca. Laico e republicano, a sua escrita e posições políticas dão azo a paixões e reacções tão extremas como a própria sociedade turca. Odiado pelos republicanos radicais e pelos islamistas, ainda há dias surgiram notícias de um atentado gorado que tinha objectivo assassiná-lo. Ora, na obra de Pamuk, nenhum livro retrata tão fielmente as contradições da sociedade turca como Snow ("Neve"), ainda não publicado entre nós (mas certamente em vias de o ser). O livro narra a história de Ka, um poeta emigrado na Alemanha, que regressa à Turquia para investigar uma vaga de suicídios em Kars, uma cidade numa das zonas mais remotas do país. Sem dar por isso, aos poucos, Ka vê-se envolvido numa teia de tensões e contradições, em que as várias facções existentes na cidade (os islamitas, os moderados islâmicos, os republicanos, os extremistas seculares) se confrontam (em sentido literal e figurado) pelo controlo da cidade e do país. É igualmente neste livro que a questão do genocídio armeno ganha alguma relevância, ao ser denunciado por uma das personagens. Foi devido a esta cobertura da questão armena que Pamuk tem sido alvo de atentados.
Por tudo isto, este é um livro que vale a pena ler. Por tudo isto, esta é uma referência indispensável para percebermos a Turquia moderna. E se as primeiras páginas são mais densas e opacas do que, por exemplo, o celebrado "O Meu Nome é Vermelho" (publicado pela Presença), a acção torna-se decisivamente emocionante ao longo do livro. Uma obra difícil de esquecer.
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