19 outubro 2010

O "LAPSO" RELAPSO


Segundo o Jornal de Negócios, a Ascendi argumentou que os 587,2 milhões de euros contabilizados no Orçamento de Estado foram um “lapso” do governo e que o Estado só lhes deve 150 milhões de euros em 2010 referentes às alterações dos contratos das SCUT. Por isso, a Ascendi pediu ao Ministério das Finanças corrigir o “lapso” no Orçamento. Os 150 milhões fazem sentido, pois essa verba está orçamentada no OE 2011, assim como podemos ver no quadro abaixo. No entanto, ficam ainda por explicar os 587,2 milhões de euros contabilizados como dotações extraordinárias para 2011, para a "reposição do equilíbrio financeiro" da Ascendi. (sim. não são 587,2 menos 150 milhões de euros. São mesmo 587,2 milhões de euros).
Umas horas mais tarde, o Ministério das Finanças veio esclarecer que, afinal, as dotações extraordinárias se referem "à regularização de pagamentos a instituições que financiaram as concessões Aenor e a SCUT Interior Norte e que dizem respeito a reequilíbrios financeiros acordados em 2006 e 2008”.
O que o Ministério não referiu é que a Aenor é a antiga denominação da Ascendi (como pode ser visto aqui, onde se informa que o “conjunto de empresas do Grupo Aenor procedeu à alteração da sua marca comum Aenor para Ascendi”), e que a SCUT Interior inclui, entre outros grupos, a Opway, que é accionista da Ascendi. Por outras palavras, as dotações extraordinárias parecem ser, de facto, directa ou indirectamente para a Ascendi ou para os financiadores e os accionistas da Ascendi. 
No entanto, a grande questão é saber porquê e por que é que estas despesas estão agora a ser orçamentadas e não o foram em 2007, 2008, ou 2009. E esta é uma questão que deve ser devidamente esclarecida pelo Ministro das Finanças ou pelo Secretário de Estado das Finanças. Afinal, o que está em causa são quase 600 milhões de euros dos contribuintes, os mesmos que vão ser agora sujeitos ao maior agravamento fiscal das últimas décadas.
Mais: sabendo que o governo rompeu o contrato salarial com os funcionários públicos, cortando-lhes os salários, e rompeu o contrato eleitoral com os eleitores, aumentando-lhes os impostos, seria também importante perceber por que é que o governo não se deu ao trabalho de tentar renegociar estas despesas com os grupos económicos em questão.

Convém igualmente referir que se as dotações extraordinárias são um lapso, então são um lapso muito relapso. Se não, vejamos. A verdade é que a expressão “Ascendi” aparece 5 vezes no Relatório do Orçamento. Assim, na página 124, o texto refere:
A evolução prevista da despesa de capital reflecter [sic], por um lado, o aumento das transferências para:
· O Exterior, relativo á regularização de responsabilidades financeiras por entrega de equipamento militar em 2010;
· O Grupo ASCENDI, no âmbito dos compromissos assumidos pelo Estado com aquela sociedade;

Igualmente, na página 126, lemos que:
De referir que o peso das ―Funções económicas se mantém inalterado em 1% do PIB, o que é explicado,
em maior expressão, por as verbas destinadas à regularização dos compromissos com o Grupo ASCENDI se encontrarem classificadas na subfunção ―Transportes e comunicações."

E na página 210, reitera-se a ideia de que as despesas extraordinárias se devem à reposição do equilíbrio financeiro da Ascendi:
As despesas excepcionais [do Ministério das Finanças] aumentaram em 8,7% devido essencialmente à reposição do equilíbrio financeiro – ASCENDI.

Finalmente, na página 212, encontram-se mais duas referências à Ascendi. Aqui:
“Nos subsídios destacam-se os concedidos ao sector dos transportes, com 329,7 milhões de euros, bem como o reforço da estabilidade financeira (ASCENDI) já referida anteriormente.”
E no Quadro V.4.4.

"Quadro V.4.4. MFAP - Despesas Excepcionais
(milhões de euros)

2010
2011
Variação

Estimativa
Orçamento
%
Comissões e outros encargos
217,0
655,1
201,9
   dos quais:



      Assunção de passivos e regularização do passado
19,3
24,3
25,9
      Reposição do Equilíbrio financeiro - ASCENDI
150,7
587,2
289,6

Fonte: Relatório do Orçamento 2011, p. 212

E, finalmente, as outras grandes questão que se colocam são as seguintes: 
1) Porquê estas contrapartidas financeiras? Serão estas as primeiras facturas que iremos pagar pelas dezenas de milhares de euros em PPPs (parcerias público-privadas) nas próximas décadas?
2) Se sim, onde é que estão previstas estas despesas, dado que os relatórios da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças parecem não referir estas contrapartidas para os financiadores destas infra-estruturas antes de 2013?
3) E mais importante, que outras surpresas nos reservam os próximos orçamentos? Quantas dotações extraordinárias nos aparecerão pela frente? Que outras desorçamentações foram feitas nos últimos anos? Quanto nos custarão estas desorçamentações e outros malabarismos contabilísticos?

Enfim, tudo isto é, no mínimo, muito pouco transparente. Por isso, e para acabarmos de uma vez por toda com a tendência dos nossos governos em levar a cabo este tipo de manobras orçamentais (este governo não é caso único), devíamos seguir as recomendações de organizações internacionais como a OCDE, e criar uma comissão de peritos e auditores independentes que elaborasse pareceres sobre os Orçamentos de Estado. Eu sei que já existe o Tribunal de Contas, que faz um trabalho notável, mas cujas análises só são efectuadas meses depois do Orçamento já ter sido aprovado. E também existe a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental na Assembleia da República), que faz pareceres excelentes, mas que não tem grande poder efectivo. Em contraste, uma comissão independente que emitisse pareceres públicos (e numa linguagem que todos entendessem) sobre a transparência das finanças públicas poderia impedir que se levassem a cabo os abusos dos últimos anos e que tanto lesam a economia nacional e irão lesar as gerações futuras. Por isso, esperemos que tudo o  que estamos agora a aprender no sirva de lição e nos faça actuar nesta área.
   
Entretanto, arrisco-me a fazer já uma previsão. A primeira medida do próximo governo será mandar levar a cabo uma auditoria profunda e detalhada das contas públicas. E será então que descobriremos a verdade de todos os truques e atentados fiscais que foram feitos nos últimos anos. Só esperemos que já não seja tarde demais para evitar males maiores.

4 comentários:

esseantonio disse...

Mais uma vez, como tendo sido hábito, trata-se de 'gato escondido com o rabo de fora'. Mas, não faz mal, porque continuam a ter a maioria das intenções de voto, dizem as sondagens. Logo, como se calhar ainda ganham as próximas eleições, cada vez será mais difícil fazer a tal auditoria rigorosa e independente às contas do Estado...

JAM disse...

Cada dia que passa estou mais convicto de que o PSD só deve viabilizar o Orçamento se o Governo aceitar reforçar as medidas que reduzam estruturalmente as despesas (Grandes Obras Públicas, extinção de Institutos Públicos e de empresas municipais com efectiva aplicação do PRACE, aplicação das regras gerais da administração central às regiões e autarquias, uniformização proporcional das remunerações dos gestores públicos com um limite superior nunca acima da remuneração do Presidente da República, congelamento de prémios em empresas com prejuízos ou endividamento, Privatização da RTP e da TAP, etc.).

Há muito por onde reduzir a despesa de modo a não estrangular a economia e a classe média e esse não foi o caminho escolhido até ao momento.

Força Emergente disse...

Caro Alvaro Santos Pereira
Só há uma semana descobrimos este seu blog.
Queremos desde já felicitá-lo pela valia e clareza dos conteúdos informativos.
Do melhor que se vai publicando na NET.
Vamos colocá-lo entre os nossos blogues de referência.
Obrigado.

Manuel Pinheiro disse...

Boa tarde. Descobri o seu blogue através do Facebook do José Manuel Fernandes.

Parabéns e sobretudo obrigado pela sua análise que muito me ajuda a compreender melhor o orçamento.

E, confesso, a ficar ainda mais preocupado.

Sugiro que abra uma página de Facebook para exportar para lá automaticamente cada texto do blog. Isso faz-se sem trabalho e possibilita aumentar muito o número de leitores, certamente muito interessados no seu trabalho