Os têxteis e o calçado são frequentemente considerados como os “sectores tradicionais” da economia portuguesa. No entanto, muitas vezes esquecemo-nos que foram exactamente estes sectores os principais motores do impressionante crescimento económico registado aquando da industrialização portuguesa iniciada no final da década de 50. Não é difícil perceber porquê. Nos anos 60, Portugal tinha claras vantagens comparativas nestes sectores em relação aos nossos principais concorrentes nos mercados internacionais. Os têxteis e o calçado eram de boa qualidade e com um custo muito atractivo, visto que os salários portugueses eram relativamente baixos e a mão-de-obra nacional era abundante. Estas vantagens eram ainda mais pronunciadas numa altura em que a Europa de Leste e países como a China estavam bem longe de participar nos mercados exportadores. Por isso, a partir da década de 1960, Portugal aproveitou a boleia da entrada na EFTA (a área de comércio livre europeia), e as exportações nacionais dos têxteis e do calçado cresceram a ritmos muito elevados (a rondar os 20% ao ano) até aos meados dos anos 70. Contudo, a turbulência política e económica que se seguiu à Revolução de Abril de 1974 e a recessão mundial provocada pelos choques petrolíferos dessa década provocaram um abrandamento significativo do nosso sector exportador, com especial incidência para os têxteis e calçado, que viram aumentar significativamente a sua contribuição no total das exportações nacionais (ver gráfico)
Fonte: Banco de Portugal
Uma segunda era de ouro dos têxteis e do calçado nacionais ocorreu com a nossa adesão à Comunidade Económica Europeia, quando os europeus abriram ainda mais os seus mercados aos nossos produtos. Assim, e como podemos ver no gráfico, no início da década de 90, os têxteis e o calçado já constituíam cerca de um terço das exportações nacionais. Infelizmente, os tempos bons não duraram muito. Ao longo dos anos 90, três factores acabaram por marcar profundamente estes sectores. Primeiro, o muro de Berlim caiu, e a Europa decidiu reunificar-se após décadas de costas voltadas, de modo que, a partir daí, os nossos exportadores passaram a ter que concorrer nas mesmas condições às oferecidas aos países do Leste europeu. Segundo, países como a China aproveitaram a maior liberalização dos mercados mundiais para se industrializarem e para se tornarem em máquinas exportadoras extremamente eficientes e concorrenciais, arrasando muitos dos seus concorrentes nos mercados internacionais. Os têxteis e o calçado portugueses foram dos mais afectados, de modo que nos anos seguintes não só estes sectores viram diminuir a sua importância no total das exportações nacionais (gráfico 1), como a sua quota de mercado nas exportações mundiais decresceu significativamente (Quadro 1). E, terceiro, em meados da década de 90, Portugal decidiu aderir à moeda única europeia, o que acabou com a possibilidade de desvalorizar a moeda (o que tornava as exportações mais baratas) para ganhar competitividade. Neste sentido, é interessante observar que vários estudos mostram que o fim do escudo afectou principalmente os sectores mais vulneráveis de baixo valor acrescentado da economia nacional, tais como os têxteis e o calçado. Foi, aliás, nessa altura em que muitos declararam que os têxteis e o calçado portugueses não tinham futuro, o que iria arrastar centenas de empresas nacionais para a falência e milhares de trabalhadores para o desemprego. E foi aí que a indústria da moda espreitou a sua oportunidade e veio a dar um novo e importante fôlego a estes sectores.
O RESSUSCITAR DA MODA
Variação da quota de mercado dos têxteis e calçado portugueses nos mercados mundiais, 1968-2006
1968-71 | 1972-76 | 1977-81 | 1982-86 | 1987-91 | 1992-96 | 1997-01 | 2002-06 | |
Têxteis, calçado, couros e peles | 0.7 | -0.8 | 3 | 3.6 | 1.9 | -0.4 | -1.3 | -2.4 |
Fonte: Amador e Cabral (2008)
Foi exactamente esta perda de quota de mercado e a forte concorrência da Europa de Leste e da China que fez com que muitas das empresas nestes sectores reagissem, apostando em produtos mais sofisticados, de maior qualidade e de maior valor acrescentado, melhorando as suas capacidades de comercialização, marketing e distribuição, e adoptando técnicas organizativas mais avançadas. Os resultados não se fizeram esperar. Aos poucos, estes sectores rejuvenesceram e reestruturaram-se, e, nos anos seguintes, conseguiram inclusivamente aumentar a importância relativa destes produtos nas exportações industriais portuguesas.
De início, esta tendência de rejuvenescimento e de reestruturação foi particularmente eficaz no sector do calçado, que começou a investir mais no design e no marketing dos seus produtos, bem como encetando campanhas de marketing destinadas a melhorar a imagem do sector e dos sapatos portugueses como produtos de qualidade. O objectivo era uma transformação radical: o “Made in Portugal” devia deixar de ser um sintoma de bens de baixa qualidade, para passar a ser um sinal de produtos de qualidade inexcedível. E a estratégia resultou, muito devido ao trabalho e à inovação da fileira da Moda, que deu uma outra dimensão e uma outra qualidade aos produtos do sector.
Gradualmente, a quota portuguesa nos mercados europeus cresceu mais de 20% numa década, de maneira que, actualmente, Portugal já produz um em cada dez sapatos vendidos na Europa. O sector do calçado alcançou um sucesso tal que Portugal apresenta um saldo francamente positivo na balança comercial deste produto, sendo este o sector nacional que apresenta igualmente a melhor taxa de cobertura. O sector do calçado exporta hoje em dia mais de 90% da sua produção, e tem clientes em mais de 115 países, um sinal inequívoco do sucesso da sua internacionalização. Como é que foi possível? Transformando radicalmente a qualidade e o marketing do produto, e apostando na indústria da moda como sendo um veículo privilegiado para a promoção do calçado nacional.
E foi assim que tudo (ou quase tudo) mudou. Durante as duas anteriores épocas de ouro do calçado português, os sapatos nacionais eram competitivos, acima de tudo, porque eram baratos. Porém, na altura não havia grandes dúvidas que os sapatos portugueses estavam num patamar de qualidade e de marketing bastante inferior ao calçado de outros países, como a Itália. Por outras palavras, até à grande crise dos anos 90, os sapatos italianos eram sapatos de (e da) moda, enquanto o calçado português eram sapatos para as massas, mas não eram propriamente criadores e geradores das grandes tendências da moda internacional. Não havia nada de errado sobre isso, a não ser a maior vulnerabilidade que tal estratégia acarretava, pois expunha-nos mais à concorrência dos países com custos laborais ainda mais baixos. Ao remodelar-se e ao investir em produtos de maior qualidade e valor acrescentado, o sector do calçado garantiu a sua maior competitividade nos mercados internacionais, contribuindo para a sua sustentabilidade e sobrevivência.
Por seu turno, a indústria têxtil tem passado ainda por mais dificuldades nos últimos anos. A grande concorrência dos têxteis de países como a China deu azo a uma descida das exportações nacionais do sector em mais de 20%, o que levou ao encerramento e à deslocalização de muitas unidades de fabrico e ao desemprego de milhares de trabalhadores. Ainda assim, as exportações têxteis do país ainda totalizam mais de 3,5 mil milhões de euros, mais de 10% das exportações nacionais.
Porém, aos poucos, o sector parece estar a emergir da grave crise que atravessou. Como? Através da aposta em produtos de maior qualidade e com maior atenção ao design, e apoiando-se na promoção mais agressiva do design nacional e na formação de mais capital humano no sector. E é assim que, depois dos precursores como Ana Salazar e António Tenente terem dado um impulso fundamental à Moda portuguesa nos anos 90, hoje em dia temos dezenas de estilistas e de designers de reputação nacional e até internacional, e eventos como o Portugal Fashion começam a estar cada vez mais nas bocas do mundo.
Porventura, o exemplo mais emblemático do futuro do sector são as calças de ganga Salsa, que prometem tornar-se num grande caso de sucesso a nível internacional. Esperemos que sim. A marca Zippy também já iniciou uma campanha agressiva de penetração em vários mercados mundiais, e outras marcas começam a trilhar o mesmo caminho. Por isso, e se as coisas correrem bem, talvez estejamos a testemunhar os primeiros passos de uma nova época de ouro para os têxteis e o calçado portugueses. Talvez num futuro próximo seja até possível que nós tenhamos também as nossas Zaras e as nossas Mangos, como os espanhóis, dando azo a uma nova era em que o crescimento destes sectores é mais sustentado, mais produtivo, e duradouro. Para tal, não há dúvidas que a indústria da Moda tem sido absolutamente preponderante para estas tendências. Se não tivessem sido os nossos designers, os nossos estilistas, e os empreendedores destes sectores, certamente que nem os têxteis, nem o calçado teriam futuro. E se estes sectores não tivessem futuro, certamente que o futuro da economia nacional seria ainda menos risonho. Aliás, se um dia retomarmos o sucesso económico do último meio século, não restam dúvidas que tal só será possível graças a sectores inovadores e internacionalizados como os da Moda nacional.
E foi assim que tudo (ou quase tudo) mudou. Durante as duas anteriores épocas de ouro do calçado português, os sapatos nacionais eram competitivos, acima de tudo, porque eram baratos. Porém, na altura não havia grandes dúvidas que os sapatos portugueses estavam num patamar de qualidade e de marketing bastante inferior ao calçado de outros países, como a Itália. Por outras palavras, até à grande crise dos anos 90, os sapatos italianos eram sapatos de (e da) moda, enquanto o calçado português eram sapatos para as massas, mas não eram propriamente criadores e geradores das grandes tendências da moda internacional. Não havia nada de errado sobre isso, a não ser a maior vulnerabilidade que tal estratégia acarretava, pois expunha-nos mais à concorrência dos países com custos laborais ainda mais baixos. Ao remodelar-se e ao investir em produtos de maior qualidade e valor acrescentado, o sector do calçado garantiu a sua maior competitividade nos mercados internacionais, contribuindo para a sua sustentabilidade e sobrevivência.
Por seu turno, a indústria têxtil tem passado ainda por mais dificuldades nos últimos anos. A grande concorrência dos têxteis de países como a China deu azo a uma descida das exportações nacionais do sector em mais de 20%, o que levou ao encerramento e à deslocalização de muitas unidades de fabrico e ao desemprego de milhares de trabalhadores. Ainda assim, as exportações têxteis do país ainda totalizam mais de 3,5 mil milhões de euros, mais de 10% das exportações nacionais.
Porém, aos poucos, o sector parece estar a emergir da grave crise que atravessou. Como? Através da aposta em produtos de maior qualidade e com maior atenção ao design, e apoiando-se na promoção mais agressiva do design nacional e na formação de mais capital humano no sector. E é assim que, depois dos precursores como Ana Salazar e António Tenente terem dado um impulso fundamental à Moda portuguesa nos anos 90, hoje em dia temos dezenas de estilistas e de designers de reputação nacional e até internacional, e eventos como o Portugal Fashion começam a estar cada vez mais nas bocas do mundo.
Porventura, o exemplo mais emblemático do futuro do sector são as calças de ganga Salsa, que prometem tornar-se num grande caso de sucesso a nível internacional. Esperemos que sim. A marca Zippy também já iniciou uma campanha agressiva de penetração em vários mercados mundiais, e outras marcas começam a trilhar o mesmo caminho.
Nota:meu arigo no Notícias Magazine no último fim-se-semana.
3 comentários:
Muitos parabnés Alvaro. O texto é bem escrito e explica de uma forma muitissimo clara uma importante faceta do nosso Portugal. Creio que as pessoas precisam de ler isto e textos como este. Obrigado
Obrigada, Álvaro, é bom saber-se.
Caro Àlvaro,
Eventualmente as nossas exportações de texteis e calçado até podem estar a correr bem. Mas estaremos sempre com o coração na boca porque o nosso país não está associado a qualquer imagem de qualidade. Portanto é tudo uma questão de preço.
Acabei de vir do seu Canadá. Sem qualquer duvida os melhores vinhos que bebi foram uns Douro. A anos luz dos Cabernett Sauvignon, Pinot Noir, Merlot e companhia. Contudo ninguem procura vinhos portugueses.
Porque razão? Porque é rara a pessoa que asssocia Portugal a qualidade.
Elementar, meu carom Álvaro. Imagem, imagem e imagem. É o que falta a Portugal. Se a tivessemos os nossos vinhos, os nossos queijos, os nossos sapatos e os nossos sapatos não chegavam para as encomendas. Enquanto isso não acontecer estamos a concorrer com os chineses.
Antonio
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