Quando, dentro de 30 ou 40 anos, os historiadores olharem para a época actual e a confrontarem com o nosso passado colectivo, não lhes será muito difícil estabelecer vários paralelos com a grave crise assolou o país em 1891 e 1892, e que nos forçou a declarar uma bancarrota parcial. As consequências dessa insolvência nacional foram terríveis, pois, para além dos inevitáveis custos reputacionais, Portugal viu-se arredado dos mercados financeiros internacionais durante várias décadas, um facto que teve enormes consequências para a condução da política económica do país e que contribuiu enormemente para a instabilidade política que se viveu nos anos que se seguiram.
Nós ainda não chegámos a esse ponto, mas estamos a caminhar a passos largos para uma situação em que o incumprimento da dívida do país se possa revelar inevitável. É certo que, mesmo se tal acontecer (esperemos que não), Portugal está hoje muitíssimo mais preparado e muito mais integrado com a Europa para evitar ser ostracizado por muito tempo pelos mercados financeiros. Portugal é igualmente um país muitíssimo mais avançado do que há 120 anos atrás. No entanto, também é certo que hoje em dia temos algumas vulnerabilidades que não tínhamos há 120 atrás (p. ex., não temos colónias, nem temos uma moeda nacional), o que torna o ajustamento a fazer potencialmente mais penoso.
Mesmo assim, não há dúvidas que toda a situação que se vive hoje em dia é muito lamentável. Muito lamentável mesmo. É lamentável que todos nós nos tenhamos deixado endividar acima das nossas possibilidades. É lamentável que os nossos governantes tenham tentado escamotear a grave situação nacional, fingindo que a nossa participação no euro nos isentava da obrigação de termos de ter uma política económica responsável. E é ainda mais lamentável que a propaganda política tenha substituído toda e qualquer noção de prudência e de bom senso, contribuindo assim para que a grande maioria dos portugueses não se apercebesse do quão sério era o estado do país até ter sido tarde demais.
E é assim que, no dealbar da segunda década do novo século, nos vemos confrontados com a maior dívida pública dos últimos 160 anos (ficando acima de 90% do PIB este ano) e com uma dívida externa que é certamente a mais elevada desde os meados do século XIX. E nestes cálculos não estão sequer incluídas as dívidas das PPPs (mais 48 mil milhões de euros), nem as dívidas das empresas públicas (que já ultrapassam os 40 mil milhões de euros). Se estivessem, facilmente perceberíamos que a nossa dívida pública actualizada já ronda os 125%-130% do PIB. Ou seja, não somos a Grécia, mas não estamos longe.
Por isso, e neste momento de crise, vale a pena perguntar: como é que foi possível? Como é que nos deixámos chegar a este ponto? Como é que as coisas correram tão mal? A resposta a estas perguntas não é fácil, mas, ainda assim, podemos resumir as explicações a quatro grandes factores. Primeiro, o endividamento foi estimulado pela descida dos juros e pelas maiores facilidades de crédito proporcionadas pela nossa entrada no euro. Segundo, a prolongada crise económica da última década limitou o crescimento da riqueza e tornou-nos mais vulneráveis à subida do endividamento. Terceiro, uma situação já delicada foi exponenciada pela irresponsabilidade dos nossos governantes, que não só não deram a importância devida ao explosivo crescimento das dívidas do país, como, e principalmente, demonstraram uma terrível e dispendiosa obsessão de deixar obra feita a todo o custo. E é assim que, como os cálculos do meu próximo livro demonstram, quase metade do endividamento nacional se deve directa ou indirectamente ao nosso Estado e às políticas dos nossos governos. A crise internacional foi assim o choque exógeno que fez descarrilar um comboio já em avançado estado de descontrolo.
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Neste sentido, gostaria de reiterar o que já disse em várias ocasiões, mas que nunca é por demais mencionar. Em relação à política económica, a culpa não é só deste governo. A culpa de grande parte do mal-estar nacional é do modelo económico que tem sido seguido, de uma forma ou de outra, por todos os governos dos últimos 15 anos, com especial preponderância para os governos Guterres e, como é óbvio, o governo actual.
É igualmente importante referir mais uma vez que, se chegámos a esta situação, foi porque os nossos governantes demonstraram uma irresponsabilidade indesculpável e uma atroz incúria fiscal. Por favor, não me venham com o argumento que este Ministro das Finanças e este governo tiveram azar, pois tinham feito um trabalho excepcional até terem esbarrado com a crise internacional. Por favor, não me digam que a consolidação orçamental tinha sido muito boa até 2008. É certo que os números são razoáveis. Porém, não podemos esquecer que os défices na ordem dos 2,7% do PIB só foram alcançados porque não só a dívida pública baixou bastante com as receitas das privatizações e com descidas dos juros, mas também porque, e principalmente, praticamente todo o grande investimento público foi feito através de PPPs ou à custa do endividamento de empresas públicas como a Parque Escolar. Ou seja, as obras foram pagas a crédito, sem que este governo tivesse que se preocupar com qualquer encargo. Só este governo foi responsável por PPPs que totalizaram mais de 20 mil milhões de euros. 20 mil milhões de euros que não entraram nos défices dos anos em que as obras foram feitas e que, infelizmente, entrarão nos défices dos governos futuros e nas dívidas das gerações vindouras.
Para além do mais, e como já aqui defendi várias vezes, é por demais evidente que só agora é que estamos a começar a descobrir os buracos orçamentais que este governo vai legar. O Eurostat já encontrou alguns, mas mais virão. Podemos ter a certeza. E só vamos descobrir o verdadeiro estado das contas públicas e os danos que foram causados quando fizermos uma auditoria às finanças do Estado. Uma auditoria que certamente será feita pelo próximo governo e que devia realizada por uma entidade independente como o Tribunal de Contas ou a UTAO (a unidade tecnica de apoio orçamental do parlamento). Só então é que poderemos perceber o esforço que teremos de fazer para conseguimos tornar com que as nossas dívidas sejam sustentáveis. Esperemos que este esforço não se venha a mostrar impossível de concretizar.
Enfim, vivemos, sem dúvida, momentos negros do nosso país. Muito negros mesmo. E, infelizmente, o pior ainda está para vir. O pesadelo não acaba com a queda do governo ou com a sua substituição por um governo responsável após a realização de eleições. Bem pelo contrário. A queda do governo é somente o despertar do pesadelo. A queda do governo é só um primeiro passo. Um pequeno primeiro passo para que consiguemos finalmente começar a combater os danos que foram cometidos ao país nos últimos anos. Resta saber se ainda vamos a tempo para evitar um desastre ainda maior.
4 comentários:
Deixe-me dizer-lhe sem quaisquer tipos de bajulações desnecessárias (odeio bajulação fútil) que o seu blogue me cativou desde há uns tempos para cá. Sou avesso a economia e assuntos do género no que concerne à sua génese e dinâmica mais intrínseca, mas não me tenho mantido afastado deste domínio em Portugal, mesmo vivendo agora no Reino Unido.
Tenho seguido o seu blog com bastante atenção, e com ainda mais especial atenção o post de hoje. Fez-me lembrar o livro "Império à deriva - A corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821" escrito por Patrick Wilcken. Está lá tudo projectado de tal forma que só podia acabar na realidade que enfrentamos hoje. Isto não é de hoje, isto é de há muito tempo, tempos onde fomos ainda mais cobardes, mais sectários, mais segregacionistas, mais corruptos e mais irracionais na preparação dos tempos, tempos em que o nosso ego sismou em ter brinquedos caros sem termos como os pagar a pronto ou a crédito. Claro que esta é uma visão parcial de um problema multifacetado, mas é a que me ocorre agora porque não sou economista.
www.thetoxicologisttoday.blogspot.com
Não conhecia o blog, indicou-mo pessoa amiga, avisando-me logo que, apesar de encontrar nele informação útil e actualizada, era muito sectário (pró-PSD) e induzia os leitores em erro através de meias verdades e interpretações capciosas.
Visitei-o e li vários artigos. Confirmei plenamente o aviso amigo, que exemplifico com o que retirei do último artigo «Uma crise histórica»:
Porque chegámos aqui: aponta 4 razões, todas do lado da despesa/consumo (público e privado), todas atribuíveis aos últimos 15 anos;
É hoje claro que, a par do excessivo consumo, o maior problema é a falta de crescimento da economia, resultante da destruição da estrutura produtiva levada a cabo após a entrada na EU (1986), em que se recebeu 1 milhão de euros/dia para fechar as pescas, a agricultura e a indústria e se gastou em formação profissional para nada, no imobiliário e em auto-estradas. Mas isso foi feito por pessoa intocável, e pelo governo mais competente desde que Viriato derrotou os Romanos, logo – silêncio absoluto.
Mais abaixo, na mesma lógica da reescrita da história, elege os últimos 15 anos como os da calamidade – claro.
Esquece-se, no entanto, de um pormenor: nesses 15 houve 3 da sua gente, que recebeu 4,1% de défice e, depois de governação competente, deixou 6,3% – bingo.
O jornal Expresso (19/3, p. 8 Caderno Economia) publicou o gráfico da dívida pública desde 1980. è bom que se veja para desmistificar mitos, o da cavaquismo, o do guterrismo, etc.
Os governos dos últimos 15 anos foram muito maus, mas se o nosso mal fosse só esse, já tivemos tantos que algum serviria. O nosso mal é muito mais profundo, e um dos sintomas é o sectarismo que obscurece a mentalidade das pessoas, como este blog revela. Assim não, obrigada. Não vale a pena voltar cá.
Álvaro Santos Pereira
Dentro de 30 anos a história concluirá o que afirma; uma outra conclusão será que José Sócrates Pinto de Sousa foi o último PM completamente português; depois deles a tendência será no sentido dos nossos PMs seguirem um modelo mais europeu. O uso do idioma inglês para comunicar fatos internos tornar-se-á norma e o alinhamento com paises do norte da europa, em especial os com maior influência da escola austríaca, afinal o aforro é o fundamento da riqueza nacional.
Provavelmente o MNE, com a sua proverbial sageza se aperceba que a estratégia diplomática nacional, ao cabo de 150 anos de sucesso, se encontra caduca e, torna-se urgente encontrar um novo modelo estratégico nacional.
Dentro de seis meses veremos se foi interiorizado pelas nossas elites. O, mais do que provável, novo "supremo" nacional parece indiciar que a história o espera, algo que passa completamente ao lado do ainda "supremo"; mais interessado com gadgets electrónico e tecidos caros; a vacuidade também se paga......
Cumprimentos
Adriano
Caro Álvaro,
Relativamente a este seu argumento:
"É lamentável que os nossos governantes tenham tentado escamotear a grave situação nacional, fingindo que a nossa participação no euro nos isentava da obrigação de termos de ter uma política económica responsável."
Gostaria de saber a sua opinião sobre este texto de um responsável da nossa política económica:
" Na verdade, o forte endividamento do sistema bancário no exterior é normal entre regiões de uma mesma zona monetária onde está assegurada a transferência de poupanças sem risco cambial. Os únicos limites têm a ver com a capacidade creditícia de cada uma das instituições bancárias tal como é avaliada pelo mercado e pelas suas congéneres estrangeiras.
Isto prende-se, aliás, com alguns equívocos sobre o significado da balança externa corrente para uma região de uma união monetária como é actualmente Portugal. Sem moeda própria não voltaremos a ter problemas de balança de pagamentos iguais aos do passado. Não existe um problema monetário macroeconómico e não há que tomar medidas restritivas por causa da balança de pagamentos. Ninguém analisa a dimensão macro da balança externa do Mississipi ou de qualquer outra região de uma grande união monetária. Isto não significa que não exista uma restrição externa à economia. Simplesmente esta é o resultado da mera agregação da capacidade de endividamento dos vários agentes económicos. O limite depende essencialmente da capacidade de endividamento dos agentes internos (incluindo os bancos) perante o sistema financeiro da Zona Euro. Se e quando o endividamento for considerado excessivo, as despesas terão que ser contidas porque o sistema financeiro limitará o crédito. O equilíbrio restabelece-se espontaneamente, por um mecanismo de deflação das despesas, e não têm que se aplicar políticas de ajustamento. A ressaca após um forte endividamento pode ter consequências recessivas, mas não é um problema macroeconómico de balança de pagamentos. A analogia mais pertinente é com o novo paradigma que vê a balança corrente externa como o resultado de uma optimização intertemporal do perfil de consumo de uma economia que defronta um mercado de capitais perfeito. A analogia é simplista para um país com moeda própria, mas serve como primeira aproximação para uma região de uma união monetária.
Para um país com moeda própria, e por hipótese tradicionalmente fraca, o limite do desequlíbrio chega em geral mais cedo, porque para pagar as importações se têm que obter divisas estrangeiras, recorrendo às reservas ou ao crédito e ambos têm limites óbvios. Ou seja, a suspeita de que um país nessa situação pode ter um problema macroeconómico de pagamentos externos, por se estarem a esgotarem as reservas, faz com a restrição externa se manifeste antes de se ter esgotado a capacidade económica de endividamento dos agentes económicos privados. É assim que, nesses casos, boas empresas ou bons projectos de investimento podem sofrer limites de financiamento se o país não tiver divisas estrangeiras. Isso não acontece, porém, no contexto de uma região que essencialmente transacciona com as restantes de uma mesma zona monetária. Se a economia estiver a crescer saudavelmente, com bons projectos, isso significa que tem produções competitivas e não existirão problemas de «balança de pagamentos» a travar o nosso processo de convergência real com a Europa desenvolvida. Se, pelo contrário a economia estiver a crescer menos que os nossos parceiros e a importar muito mais do que exporta, revelando falta de competitividade, então a balança corrente externa pode ser um indicador de problemas embora não seja ela própria um problema. É portanto um indicador que tem sempre que ser analisado juntamente com outros indicadores de competitividade."
Discurso proferido pelo Governador Vítor Constâncio na cerimónia da sua tomada de posse
http://www.bportugal.pt/pt-PT/OBancoeoEurosistema/IntervencoesPublicas/Paginas/intervpub20000223.aspx
Cumprimentos
MM
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