Quando daqui a 30 ou 40 anos os historiadores e os economistas se debruçarem sobre a crise actual, a variável que, por ventura, irão dar mais atenção será o endividamento da economia nacional. Nos últimos 15 anos, a espiral do endividamento foi posta em marcha a um ritmo de tal modo elevado que se criaram as condições para que todos ficássemos extremamente vulneráveis a choques externos. E foi assim que, quando a crise internacional deflagrou, o endividamento nacional tornou-se num autêntico pesadelo, cujas consequências mais nefastas já estamos a viver há cerca de um ano, mas que só agora atinge contornos mais dramáticos com o iminente recurso ao FEEF e ao FMI.
Vale a pena relembrar que este explosivo crescimento do endividamento nacional é culpa de todos: dos governos, das famílias, dos bancos e das empresas. Ninguém está isento de culpas pela subida do endividamento. Os governos gastaram acima das suas possibilidades e acima do que era razoável, embora tenham ainda beneficiado de generosas transferências externas para a construção de infra-estruturas e, principalmente, tenham tido à sua disposição mais de 25 mil milhões de euros em receitas de privatizações (que nos permitiram baixar temporariamente a dívida pública). Os governos são igualmente culpados pela situação actual, pois falharam em reconhecer a gravidade colocado pelo excessivo endividamento nacional. Por outro lado, as famílias endividaram-se mais do que era aconselhável não só devido ao crescimento dos seus consumos, mas essencialmente para a compra de casa própria. Setenta e cinco por cento do endividamento familiar deveu-se precisamente à aquisição de habitação própria.
Por sua vez, as empresas endividaram-se não só para realizarem os seus investimentos, mas também para estarem presentes nos vários processos de privatização de empresas públicas, bem como para poderem participar nos lucrativos contratos relacionados com as parcerias-público privadas. E os bancos financiaram isto tudo, pois o acesso ao crédito externo ficou bem mais simplificado após a nossa adesão ao euro e as oportunidades de negócios eram realmente boas.
Para além das razões que conduziram ao aumento das dívidas, interessa perguntar: Quão grande é este endividamento? Será realmente alto ou será que só o Estado é que está demasiado endividado? Segundo os dados mais recentes do Banco de Portugal, as dívidas das famílias em percentagem do PIB já rondam os 100% do PIB. E se tomarmos em linha de conta o rendimento disponível, é muito preocupante constatar que as dívidas das famílias são cerca de 135% do rendimento disponível familiar. Como podemos ver no gráfico abaixo, o crescimento do endividamento das famílias foi praticamente contínuo nos últimos 15 anos, apesar de que o ritmo de ter abrandado a partir de 2008. Ou seja, foi a crise internacional que limitou o acesso ao crédito das famílias portuguesas, e que conduziu a uma redução do ritmo de endividamento familiar.
Gráfico _ Dívida das famílias em % do PIB e do rendimento disponível, 1997-2009
Fonte: Banco de Portugal
As dívidas das empresas também aumentaram muito nos últimos 15 anos. Mais concretamente, as dívidas empresariais cresceram de cerca de 90% do PIB em 1997 para mais de 150% do PIB em 2009. Um aumento não tão elevado como o das famílias, mas, mesmo assim, muito significativo.
Gráfico _ Dívida das empresas em % do PIB
Fonte: Banco de Portugal
Como já aqui vimos várias vezes, o endividamento do Estado também aumentou a olhos vistos, atingindo actualmente o nível mais elevado desde os meados do século 19.
E como é que conseguimos financiar todo este endividamento? Em parte com a poupança nacional. Porém, como esta baixou muito nos últimos anos, a grande quota do financiamento veio do exterior. E foi assim que nos últimos 15 anos vimos a nossa dívida externa subir sucessivamente, até que chegámos a um ponto em que os nossos credores já começam a desconfiar que não seremos capazes de cumprir as nossas obrigações financeiras. Porquê? Porque a nossa economia não cresce (e, assim, os nossos rendimentos não aumentam) e porque a dívida externa nacional já ultrapassou níveis muito perigosos, rondando mais de 240% do nosso PIB.
Infelizmente, os nossos governos optaram por não actuar perante o preocupante crescimento do endividamento nacional, visto que, durante anos, acreditaram que a nossa participação na Zona Euro significava que não mais teríamos problemas com a nossa balança de pagamentos. Isto é, poderíamos aumentar a nossa dívida quase ilimitadamente, visto que a Zona Euro nos isolaria dos efeitos nefastos com o nosso endividamento. Obviamente, estávamos completamente errados. A prova disso é que estamos hoje a pagar um preço muito elevado por um endividamento que ficou fora de controlo e que começa a ter consequências muitíssimo nefastas para a nossa economia.
Se há coisa a fazer nos próximos anos é exactamente esta: baixar o endividamento nacional para níveis menos punitivos e, principalmente, mais sustentáveis. O combate ao endividamento devia, assim, estar no centro da política económica e da política fiscal nos próximos anos. Só assim conseguiremos ter novamente um país com futuro.
4 comentários:
Caro Álvaro,
Creio que não pode existir apenas um foco mas sim 2:
a) Combate ao endividamento insustentável (isto será uma maratona que levará décadas)
b) Criar condições para que a economia volte a crescer (isto tem que ser feito já!)
Uma sem a outra são um projecto falhado à partida, um ciclo infernal de rendimentos decrescentes. O desafio entre mãos é "quase impossível" mas terá que ser feito possível - como tirar Portugal do marasmo económico, e ao mesmo tempo conseguir uma rápida redução da dívida externa (esta sim bem mais importante do que a dívida pública de que tanto se fala como se essa fosse "a dívida").
E aqui... não só o Estado será importante, a banca terá que ser instrumental.
STOPPING THE ROT? The cost of a Portuguese bail-out and why it’s better to move straight to restructuring.
http://www.openeurope.org.uk/research/portugalrestructure.pdf
Já vimos que o "mercado" não consegue controlar o endividamento. Talvez se possa regular de alguma forma artificial o crescimento do endividamento, usando os bancos. Acho que também seria importante diminuir as importações. Mas com o euro, como é que se consegue isto?
Caro Prof. Álvaro Santos Pereira
Quando os meus pais, ambos funcionários públicos, compraram a sua primeira casa de habitação (as duas anteriores tinham sido alugadas), em 1966, contraíram o empréstimo necessário junto do que então se chamava, creio, Cofre da Previdência do Ministério da Educação. Tomaram essa opção pois as condições de financiamento eram mais favoráveis que as então oferecidas pela banca comercial. A taxa de juro do empréstimo, a 20 anos, foi de 4% para um montante correspondente a 60% do valor de aquisição da habitação.
Quando, mais de 40 anos volvidos, foi possível até há um ano e picos, adquirir uma habitação com taxas de juro < 3% com zero(!) de auto-financiamento, até aos 75 anos de idade e taxas de esforço da ordem dos 40/50% do rendimento mensal, é às famílias que, sobretudo, devemos apontar o dedo da irresponsabilidade financeira quando, em simultâneo, os instrumentos de poupança tradicionais tinham rentabilidade real de pouco mais de zero?
Não será antes ao BCE na Europa do euro e à Fed americana, em estreito conúbio com os Estados respectivos, que se deveriam assacar responsabilidades ao fornecerem aos mercados sinais errados (taxas de juro baixíssimas) e que promoveram a irresponsabilidade financeira de bancos, empresas e particulares?
Enviar um comentário